30 Mai 2023
A carta, divulgada na última quarta-feira (17), pede a condenação dos envolvidos no “Massacre do Abacaxis” em que seis pessoas foram mortas e outras torturadas em dois municípios amazonenses, em 2020. Dois ex-integrantes da alta cúpula da Segurança foram indiciados, mas ainda não ocorreu o julgamento. Na imagem acima, entrevista coletiva na Arquidiocese de Manaus, com o Cimi e a Pastoral da Terra sobre o caso.
A reportagem é de Nicoly Ambrósio, publicada por Amazônia Real, 25-05-2023.
O Coletivo Pelos Povos do Abacaxis divulgou na última quarta-feira (17) o manifesto “Massacre do Abacaxis: uma operação de extermínio”, durante entrevista coletiva realizada na Cúria Metropolitana de Manaus, no centro da capital. A carta é um pedido de justiça pelos crimes cometidos contra os povos tradicionais que habitam as regiões dos rios Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, distantes a 135 km e 149 km, respectivamente, de Manaus.
Em agosto de 2020, uma operação policial deflagrada pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, na região do rio Abacaxis, resultou na morte de dois indígenas Munduruku e quatro ribeirinhos, além de diversos relatos de torturas e violações de direitos humanos.
A ação ocorreu dias após o então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social estadual, Saulo Moysés Rezende Costa, ter sido baleado enquanto realizava a prática ilegal de pesca esportiva no rio Abacaxis, onde fica a Terra Indígena (TI) Kwatá Laranjal. No dia 3 de agosto do mesmo ano, homens identificados como policiais militares entraram com os rostos cobertos nas comunidades localizadas à margem do rio, alegando se tratar de uma operação para combater o tráfico de drogas na região. Dois agentes da PM foram mortos durante a operação e, no dia seguinte, 50 policiais retornaram às comunidades.
Os dois jovens Munduruku mortos são da Aldeia Laguinho, que fica na Terra Indígena Kwatá-Laranjal. De acordo com o cacique Gelcimar, eles foram vistos, pela última vez com vida, por volta das 8 horas do dia 5 de agosto. Estavam viajando em uma rabeta [pequena canoa a motor] em direção a sede do município de Nova Olinda do Norte. Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, foi encontrado boiando no rio no último dia 7 de agosto. O corpo de seu irmão, Josivan, de 18 anos, não foi localizado.
“A projetada retaliação das forças de segurança amazonenses resultou em uma desastrada ação armada, executada por uma milícia formada por policiais sem farda, dentre os quais dois foram mortos e outros dois feridos”, destacaram as 17 entidades que assinam a manifestação. Entre elas estão o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Comissões Pastorais da Terra, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro Residentes em Manaus.
Josimar Moraes Lopes, 26 anos, e seu irmão Josivan, 18 anos, vítimas do massacre | Foto: Arquivo Pessoal
As entidades afirmam que o Massacre do rio Abacaxis foi uma operação de extermínio. Leia aqui a íntegra do manifesto.
Segundo o padre Sandoval Rocha, representante do Serviço de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental, a carta de repúdio tem objetivo de sensibilizar e informar a sociedade sobre as situações de violência cometidas pelo Estado contra as comunidades tradicionais do Abacaxis. “A gente quer sensibilizar e informar a sociedade para que todos possam acompanhar. A carta vai ser enviada para o Estado, para o Ministério Público, para a Secretaria de Segurança e para as devidas instâncias oficiais. Mas a gente já sabe que estão acontecendo as investigações, e temos que comemorar”, afirmou o religioso durante entrevista coletiva.
O professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e integrante do Coletivo Pelos Povos do Abacaxis, Tiago Maiká Schwade, lembrou que, após três anos do massacre, ninguém foi julgado pelos crimes. Maiká cobra a participação do Ministério Público Federal (MPF) na condução do caso.
“A gente compõe esse grupo de solidariedade aos povos do abacaxis, mantendo uma presença e um contato com as principais vítimas desse massacre, e temos tentado acompanhar o caminhar do processo e identificar os gargalos. Já se passaram quase três anos e a gente ainda não tem ninguém que tenha sido julgado e condenado na forma da lei”, disse.
Louismar Bonates, Ex-Secretário de Segurança Pública do Amazonas e Coronel da PM | Foto: Divulgação/SECOM-AM
Após três anos de investigações, a Polícia Federal (PF) indiciou duas pessoas envolvidas no massacre: o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), coronel Louismar Bonates, e o ex-comandante da Polícia Militar do Amazonas, coronel Ayrton Norte. Os dois ex-integrantes da alta cúpula de Segurança do Estado do Amazonas são suspeitos de serem os mandantes dos crimes, de acordo com as investigações.
“Reconhecemos a relevância destes indiciamentos por entender que a mão da Justiça começa a tocar as comunidades desta região, depois de tanto sofrimento presente nos corpos, na alma e na memória de quem viveu este massacre”, diz o manifesto das entidades.
De acordo com a investigação da PF, a tropa, sob o comando do coronel Ayrton Norte, invadiu casas sem ordem judicial, torturou moradores e cometeu os assassinatos de indígenas e ribeirinhos. O grupo também seria responsável pelo desaparecimento de duas pessoas. Segundo a apuração, os corpos foram jogados no rio Abacaxis. Bonates e Norte foram indiciados pelos crimes de homicídio, tortura, associação criminosa, cárcere privado e obstrução.
Apesar de reconhecer a importância dos indiciamentos, as organizações cobram mais uma vez a identificação e responsabilização de todos os envolvidos no episódio. “Desejamos a responsabilização de todos os envolvidos no massacre, bem como a identificação e punição dos policiais envolvidos neste crime. A indenização das vítimas e a proteção das testemunhas que presenciaram os fatos”, alegaram na carta.
O coletivo denuncia que, durante a investigação, houve rotatividade de seis delegados e diversos juízes no caso, o que alegam ser uma “manobra” para interferir na continuidade da investigação. “Repudiamos e denunciamos as manobras que objetivam esvaziar a continuidade da investigação e privilegiar a impunidade e a injustiça”, escreveram no manifesto.
Vila do Abacaxis, Nova Olinda do Norte, Amazonas | Foto: Reprodução/Redes Sociais
O Coletivo Pelos Povos do Abacaxis relatou ainda que, após as operações policiais de 2020, as invasões de garimpeiros, intimidações, ameaças e agressões são frequentes na região, resultando inclusive na queimada de uma aldeia indígena.
Em agosto de 2021, um ano após a tragédia, a Amazônia Real publicou uma reportagem relatando o medo e insegurança das pessoas que moram na região do rio Abacaxis, além do descaso das autoridades diante do ocorrido. Os episódios de violações de direitos humanos causam traumas e levam insegurança aos moradores da região.
O manifesto solicita o cumprimento de uma decisão judicial que determina a implantação de uma base móvel da PF na região do rio Abacaxis, para conter as atividades ilegais de garimpeiros e outras ameaças e agressões contra os indígenas e ribeirinhos. “Essa é uma região de conflitos de diversas naturezas e é dever do Estado garantir a segurança da população que tem sido vítima da violência e pede a presença e a proteção do Estado”, disse Tiago Maiká Schwade.
Francisco Loebens, integrante da equipe de apoio aos Povos Livres do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), afirmou que as entidades insistem para que seja feita justiça em relação ao massacre. “Por causa da insegurança que gera. Porque quem matou, quem torturou, quem humilhou e intimidou foi a polícia que deveria dar segurança às pessoas”.
Segundo Francisco, a condenação é necessária para que os habitantes da região se sintam seguros novamente. “O que se espera é que se responsabilize esses policiais envolvidos, e que sejam de fato punidos”.
Representando a Arquidiocese de Manaus, o cardeal Dom Leonardo Steiner reforçou em sua fala a necessidade de identificar os outros envolvidos no massacre. O cardeal disse que a população aguarda por justiça por todos aqueles que sofreram com a ação criminosa. “Há necessidade de se fazer justiça. As duas pessoas indiciadas não foram as únicas, como todos nós sabemos. Teve um efetivo, que foi para a região e foi comandado. Quem matou mesmo? É preciso chegar a essa conclusão”, argumentou.
Em e-mail enviado à reportagem da Amazônia Real, a PF se limitou a declarar que o caso segue em andamento e sob sigilo. “Neste momento, entendemos que não é prudente fornecer nenhuma informação. Os devidos esclarecimentos serão prestados em momento oportuno”, diz a nota. A reportagem também procurou a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, mas não obteve respostas até o momento. Não foi possível contatar os indiciados no caso, Louismar Bonates e Ayrton Norte, nem seus advogados.
Enterro de vítimas da chacina do rio Abacaxis, em Nova Olinda do Norte, Amazonas | Foto: Reprodução/CPT Nacional/2019
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Manifesto cobra por justiça para comunidades do rio Abacaxis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU